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Um homem comum

Por José Castello
Para o Valor, de Curitiba

Ruffato: "Parte dos escritores ainda se comporta como se o livro fosse fruto de hobby ou de diletantismo de escritor e não a própria essência do mercado editorial"

O escritor Luiz Ruffato se considera um escritor comum. Um trabalhador como qualquer outro. Dispensa, com ênfase, os elementos de glamour que costumam cercar a imagem do escritor no mundo contemporâneo. "Escrevo profissionalmente", diz. Lembra que tem uma vida simples, sem importância, como a de qualquer outro profissional que se dedica, com empenho e seriedade, a seu ofício. Antes de chegar à literatura, Ruffato - nascido em Cataguases, Minas, em 1961 - foi pipoqueiro, trabalhou em um armarinho e em um botequim e foi jornalista. Não vê grandes diferenças entre seus ofícios anteriores e o atual. Um homem trabalha com panelas, outro com carretéis ou garrafas de cerveja; ele, hoje, lida com palavras. São instrumentos de trabalho, como quaisquer outros. Não há razão para traçar entre eles uma linha de superioridade ou de inferioridade. Se for preciso fazer um balde de pipocas, ele faz; se é preciso escrever um romance, escreve. E pronto.

Diz sem meias palavras: "Encaro a literatura como uma profissão como outra qualquer, portanto destituída dessa aura de singularidade que poderia cercá-la". Cada vez mais apegado à ideia de simplicidade, no romance que está escrevendo no momento Ruffato nos conta a história de um homem que descobre "que não tem propriamente uma biografia, ou melhor, que sua vida é totalmente desinteressante". Um dia, por motivos alheios à sua vontade, o personagem procura a ajuda de um psicanalista. Como se considera um homem sem identidade e sem vida pessoal, "ele começa a contar histórias de outras pessoas que conheceu ao longo de sua existência". Cede seu lugar aos outros. Coloca-se no lugar dos outros. Como Ruffato, o personagem também se considera um homem qualquer.

Esse personagem é o homem que Luiz Ruffato já foi e também aquele que gosta de continuar a ser. Em parte, porém, os fatos parecem desmenti-lo ou, pelo menos, relativizar seu projeto pessoal de simplicidade. Ao contrário dos pipoqueiros e dos balconistas de armarinho, sua vida anda cada vez mais agitada por uma sucessiva (e, é inevitável pensar, glamourosa) série de viagens, principalmente internacionais, que ele faz por motivos de trabalho. Viagens que terminam por atrapalhar o exercício de sua profissão - o ato solitário e paciente da escrita. "Somente no ano passado, estive na França [três vezes], Alemanha [duas vezes], Estados Unidos [como escritor residente em Berkeley], Portugal, Suíça, Áustria, Japão e México, sempre a trabalho." Isso sem falar das viagens de trabalho no Brasil. Não é, em definitivo, uma rotina conhecida por pipoqueiros ou por balconistas. Ainda assim, Ruffato encara essa maratona como "um desdobramento natural" de seu trabalho de escritor. "É uma etapa quase tão importante quanto aquela em que tenho de me isolar para escrever." E segue em frente.

Ruffato persegue avidamente não só a imagem do escritor comum, mas aquela - mais engajada e lúcida - do escritor profissional. "Eu sou escritor profissional desde 2003." Orgulha-se de, desde então, viver apenas do fruto dos direitos autorais de seus livros, publicados no Brasil ou no exterior. "E também de antologias que organizo, de cachês para participar de feiras e festivais literários, ou como jurado de concursos literários". Não é, de fato, uma vida fácil - e exige não só grande empenho, mas bom preparo físico e muito suor. É, sem dúvida, uma vida de trabalhador.

"Hoje há dinheiro circulando no meio literário como em nenhum outro momento da vida social brasileira", analisa o escritor

Nesses dez anos, Ruffato teve a chance (e a sorte) de acompanhar a expressiva evolução do mercado de trabalho do escritor no Brasil e de sua inserção na vida social. Lembra que hoje, em nosso país, chegamos a ter pelo menos um evento literário a cada três dias, "a maioria deles pagando bons e até ótimos cachês".

Expandiram-se não só o mercado editorial, mas todo um vasto mercado - de feiras, festas literárias, eventos culturais, oficinas, concursos - que gira em torno das editoras. Neles engajado, o escritor trabalha cada vez mais. Mas pode viver senão diretamente dos direitos autorais pelo menos dos ganhos resultantes dos eventos que envolvem a produção editorial. O escritor: um "homem de eventos". Estranha ideia a que as palavras de Ruffato nos levam a chegar. Ideia que nos obriga a repensar a própria ideia de literatura no terceiro milênio.

"Hoje há dinheiro circulando no meio literário como em nenhum outro momento da vida social brasileira", Ruffato analisa. Dado que transforma sua visão do escritor como um trabalhador não apenas em um ideal, mas em uma realidade. "Pensando em termos de resultados, creio que estamos vivendo um dos períodos mais interessantes da literatura brasileira." Distingue, porém, a quantidade da produção de sua qualidade. É enfático: "Isso não quer dizer que o que se produz hoje é o melhor de todos os tempos. Não é, definitivamente".

Critica, apesar de tudo, o mercado editorial brasileiro, "que ainda padece de muito amadorismo". Mas não se esquiva em atribuir uma parte importante de responsabilidade aos próprios escritores. Lamenta Ruffato: "Parte dos escritores ainda se comporta como se o livro fosse fruto de hobby ou de diletantismo de escritor e não a própria essência do mercado editorial". Admite que muitas editoras "ainda fazem contratos draconianos com os escritores e muitas delas não os cumprem". De novo, porém, divide as responsabilidades: "Mas os escritores também não cobram". Sabe que, na última década, o mercado se tornou mais competitivo. Mais um motivo para que os escritores se comportem como verdadeiros profissionais, pensa Ruffato.

Aos 51 anos, Luiz Ruffato considera que cumpriu a primeira fase de sua obra, "que tomou muitos anos da vida, dedicada a incluir a representação do proletariado na literatura brasileira". Esse longo percurso começou a ser rascunhado no belo "Eles Eram Muitos Cavalos", romance de 2001. Depois disso, desenrolou-se ao longo dos cinco volumes da série "Inferno Provisório", iniciada em 2005 com "Mamma, Son Tanto Felice" e concluída em 2011 com o romance "Domingos sem Deus". Esse período ainda envolve dois outros livros, "De Mim já nem se Lembra", de 2007, e "Estive em Lisboa e Lembrei de Você", de 2009.

Ruffato é um escritor que trabalha muito e com método. Em geral, dedica uma metade do ano para as viagens e a outra para escrever. Vive, assim, duas vidas em uma. Duas vidas que, dentro das condições atuais do mercado, se tornaram a mesma vida, já que ou o escritor aceita participar da vida pública ou - afora exceções - desaparece.

Também as leituras de Ruffato são divididas em duas séries, ou correntes, antagônicas. De um lado, as leituras profissionais - como jurado de concursos ou avaliador de bolsas literárias, por exemplo-, que ocupam, ele estima, cerca de 70% de seu tempo. Sobra 30% do tempo para as leituras que faz "por prazer", dedicadas em geral a livros de amigos ou a livros sugeridos por amigos. Sim: a amizade é, para Ruffato, um valor muito precioso, que interfere diretamente em sua vida. Sobretudo para ele, que não faz vida literária nem dá muita importância a ela. Também abre espaço, é claro, para ler ou reler os clássicos. Em especial, e acima de tudo, Machado de Assis, mas também Honoré de Balzac, Tchekhov e Oswald de Andrade, entre tantos outros. Sim, sempre que pode volta a ler Sterne, Cervantes, Pirandello e, sobretudo, Graciliano Ramos. Que considera "talvez o mais polimorfo de nossos escritores, pois cada romance dele é uma experiência formal única". Em resumo: escreve, fala, lê. Trabalha, e trabalha duro. É, sem dúvida, um profissional da escrita, e dos melhores que temos.

Como se vê como um homem simples, quanto fala de sua rotina de trabalho Ruffato garante "não ter nenhuma singularidade a reclamar". De novo: foge do glamour, renega a imagem do "homem especial". Sim, tem uma rotina para escrever - como qualquer profissional. Prefere escrever na parte da manhã, quando está mais descansado, direto no computador e, sempre que possível, em casa. "Quando não é possível - diz o profissional habilidoso, sempre pronto para enfrentar as circunstâncias -, escrevo onde dá. Só tenho que escrever sempre no computador, porque não entendo a minha letra."

Essa rotina - descreve novamente sem nenhuma ênfase especial - lhe traz "um misto de dor e alegria". Acredita Ruffato que a verdade de um texto "só será verdade para o leitor se antes for verdade para o escritor". Como suas histórias tratam, em geral, de temas muito dolorosos e mesmo traumáticos, escrever, para ele, em consequência, inclui necessariamente a experiência pessoal da dor. Dor, também, pela solidão própria da rotina dos escritores: "Por mais que sejamos resolvidos psicologicamente, ela é sempre uma carga".

Dor física, ainda, como a que atinge qualquer trabalhador braçal. "O ato de ficar sentado durante horas e com os braços estendidos provoca grandes incômodos físicos." Desmancha-se assim, em definitivo, a imagem do escritor como um homem que vive de seus impulsos e de suas inspirações súbitas, enquanto leva uma vida boêmia e luxuosa. Mas, é claro, há também alegria: "A alegria da realização de algo no qual acredito, que é a literatura". Nesse aspecto, Ruffato se sente plenamente satisfeito: "A conclusão de um livro, a resposta dos leitores e da crítica, isso contorna e compensa as dores iniciais e necessárias".

Trabalhador sério e metódico, Luiz Ruffato é um homem feliz. Desprovido de ilusões românticas a respeito do fazer literário, ele leva uma vida organizada e simples - que, nesse aspecto, nada se difere, por exemplo, da vida de um engenheiro, de um advogado, de um jornalista, de um eletricista. Mesmo se considerando e agindo como um escritor profissional, Ruffato não tem algumas das vantagens concedidas a outros profissionais. Como, por exemplo, a carteira assinada. Não vai, portanto, se aposentar: enquanto viver, terá de escrever para viver. "Essa preocupação, de ter que ter saúde para aguentar até o fim, até quando não for mais possível sentar e escrever, é uma enorme preocupação, que me angustia, embora não me paralise." A isso se junta o inevitável processo de envelhecimento. "Agora, provavelmente, percorro o terço final da estrada. E isso é assustador."

Cumprirá seu trajeto, ainda assim, com a mesma simplicidade e objetividade que nunca o abandonaram. Cumprirá, feliz, sempre cheio de entusiasmo, sempre pronto para a luta, seu destino de homem simples e comum.


Fonte:
http://www.valor.com.br/cultura/3005986/um-homem-comum
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