Resultado - II Concurso Todoprosa de Microcontos
Após incontáveis releituras, o primeiro lugar vai para Mara Augusta Soares pelo prodígio de, pronunciando apenas oito palavras cuidadosamente pesadas, desenhar um não-dito de dimensões vertiginosas entre a violência realista – tom eleito pela maioria dos concorrentes – e o lirismo, o mundo lá fora e o mundo aqui dentro, borrando irremediavelmente suas fronteiras:
Ao pular na garganta do penhasco, ele sonhou.
O segundo lugar premia uma tendência que pouco apareceu no concurso anterior, mas que desta vez – em outro sinal, talvez, de que o formato vai sendo abordado de modo mais consciente – contou com diversos representantes: a metalinguagem. Leandro Henrique assina o microconto que fez melhor uso dela, jogando ainda humor e um trocadilho inteligente na mistura. Quem se der ao trabalho de contar o número de toques do conto descobrirá que a conta fecha rigorosamente:
Conto 150. Mas assim o conto não vale, diz: valor é isso menos 10. Peço o troco. Ele devolve 20. E assim é que se faz um desconto.
O terceiro colocado, Alexandro de Camargo, é o autor da história de maior fôlego histórico, um insight de fazer inveja a papas da psicologia evolutiva como Steven Pinker:
A escrita cuneiforme teve início com as garras das bestas-feras nas peles trogloditas. Cada confronto deixava gravado: “aperfeiçoe-se”.
Menções Honrosas
Para encerrar o capítulo do II Concurso Todoprosa de Microcontos para Twitter, publico algumas histórias que mereceram menção honrosa e que ajudam a ilustrar a diversidade de estilos e efeitos abarcada pelos atuais praticantes do formato ultracurto. Carlos Seabra, por exemplo, consegue alçar um bom voo no terreno da fantasia em apenas 116 caracteres:
Os semícaros eram um povo unialado, cada qual com uma única asa. Para voar, tinham que escolher alguém e se abraçar.
Edson Victor Lima toma o caminho oposto, o do realismo cru que, frequentemente carregado de violência e desespero, tem a preferência da maioria dos cultores da narrativa mais-que-sucinta. Isso é compreensível – com o tempo tão escasso, nocauteemos logo o leitor – mas também traiçoeiro, por produzir um efeito que, já esperado, tende à mesmice. O microconto de Edson se destaca mesmo assim, talvez ao preço de reduzir um pouco além do desejável o espaço do não-dito:
Saco o iPhone para a última tuitada: “Me sigam, hahahaha.” Quem pode imaginar que essa é uma gargalhada de desespero? Pulo.
Já a micronarrativa de Bárbara M.W. deixa um mundo inteiro de subentendidos num flagrante doméstico de banalidade pungente:
Clara abriu a gaveta de calcinhas. Era a decisão mais importante de seu dia.
Os casos seguintes são curiosidades, mais duas para a lista de paródias de “O dinossauro”, o famoso microconto do guatemalteco Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Reproduzo-os porque reforçam a ideia, lançada aqui no post anterior, de que esse gênero emergente começa a demonstrar a consciência de ter uma história. O primeiro é de Igor H. Oliveira, o segundo de Ricardo Fontana Alves:
Quando ele entrou na caverna, o desenho do dinossauro ainda estava lá.
Quando acordou, a folha em branco ainda estava lá. Monterroso levantou-se e fez um café. “Merda!”, exclamava.
Com histórias de bom nível, completam a lista de 24 autores que chegaram à final Aline Naomi, Daniele Cristyne, Denival Fernandes Moreira (vencedor da primeira edição), Eduardo Sabino, Felipe Rodrigues Araújo, J.M. Cantarino, Jane Ciambelli, José Marins, Kelly Maciel, Maria Fernanda, Matheus Mavericco, Rafael Zen, Soraya Felix, Vinícius Magalhães e Zé Alfredo.
De resto, um lamento: que Gilmar da Silva Cabral tenha se atrapalhado com a contagem de toques. Exemplo notável de uso do detalhe e da especificidade para dar consistência a um drama universal, seu microconto só deixou de figurar entre os primeiros colocados porque, com um estouro de 18, me obrigou a eliminá-lo (naturalmente, sendo um concurso “para Twitter”, fica entendido que os espaços entre as palavras entram na conta). Isto não é, portanto, uma menção honrosa – é um lamento mesmo. Como seria bom neste momento ser editor e não jurado para podar umas letrinhas sem cometer uma injustiça com os outros concorrentes:
Irajá. Hospital Reviver. Asilo Feliz. Casa dos Filhos. INSS. Lar na Penha. LWA Ltda. UNIG. Colégio Educar. Creche Baú. Casa dos pais. Berço. Útero. Concepção.
Fonte:
http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/
Os semícaros eram um povo unialado, cada qual com uma única asa. Para voar, tinham que escolher alguém e se abraçar.
Edson Victor Lima toma o caminho oposto, o do realismo cru que, frequentemente carregado de violência e desespero, tem a preferência da maioria dos cultores da narrativa mais-que-sucinta. Isso é compreensível – com o tempo tão escasso, nocauteemos logo o leitor – mas também traiçoeiro, por produzir um efeito que, já esperado, tende à mesmice. O microconto de Edson se destaca mesmo assim, talvez ao preço de reduzir um pouco além do desejável o espaço do não-dito:
Saco o iPhone para a última tuitada: “Me sigam, hahahaha.” Quem pode imaginar que essa é uma gargalhada de desespero? Pulo.
Já a micronarrativa de Bárbara M.W. deixa um mundo inteiro de subentendidos num flagrante doméstico de banalidade pungente:
Clara abriu a gaveta de calcinhas. Era a decisão mais importante de seu dia.
Os casos seguintes são curiosidades, mais duas para a lista de paródias de “O dinossauro”, o famoso microconto do guatemalteco Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Reproduzo-os porque reforçam a ideia, lançada aqui no post anterior, de que esse gênero emergente começa a demonstrar a consciência de ter uma história. O primeiro é de Igor H. Oliveira, o segundo de Ricardo Fontana Alves:
Quando ele entrou na caverna, o desenho do dinossauro ainda estava lá.
Quando acordou, a folha em branco ainda estava lá. Monterroso levantou-se e fez um café. “Merda!”, exclamava.
Com histórias de bom nível, completam a lista de 24 autores que chegaram à final Aline Naomi, Daniele Cristyne, Denival Fernandes Moreira (vencedor da primeira edição), Eduardo Sabino, Felipe Rodrigues Araújo, J.M. Cantarino, Jane Ciambelli, José Marins, Kelly Maciel, Maria Fernanda, Matheus Mavericco, Rafael Zen, Soraya Felix, Vinícius Magalhães e Zé Alfredo.
De resto, um lamento: que Gilmar da Silva Cabral tenha se atrapalhado com a contagem de toques. Exemplo notável de uso do detalhe e da especificidade para dar consistência a um drama universal, seu microconto só deixou de figurar entre os primeiros colocados porque, com um estouro de 18, me obrigou a eliminá-lo (naturalmente, sendo um concurso “para Twitter”, fica entendido que os espaços entre as palavras entram na conta). Isto não é, portanto, uma menção honrosa – é um lamento mesmo. Como seria bom neste momento ser editor e não jurado para podar umas letrinhas sem cometer uma injustiça com os outros concorrentes:
Irajá. Hospital Reviver. Asilo Feliz. Casa dos Filhos. INSS. Lar na Penha. LWA Ltda. UNIG. Colégio Educar. Creche Baú. Casa dos pais. Berço. Útero. Concepção.
Fonte:
http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/